Fé – Dualidade e Poder

A dualidade da fé

A fé poderia ser definida como uma crença ilógica na ocorrência do improvável? Dostoievsky acreditava que a fé e as demonstrações matemáticas são duas coisas inconciliáveis. No século IV, Santo Agostinho dizia que “ter fé é assinar uma folha em branco e deixar que Deus nela escreva o que quiser”. Como vocábulo do Aurélio, a fé se associa de forma análoga a crença/convicção atribuída a dogmas religiosos. Certo é que a fé vive uma relação enleada com a sociedade: é esperança e alicerce, e muitas vezes um calo silencioso. “Andar com fé eu vou, que a fé não costuma falhar”, é o jeito que Gil escolheu caminhar. “A arte é de viver da fé, só não se sabe fé em que”: o ritmo de Herbert Viana. Seria ela apenas a confiança naquilo que não se pode ver?

Fé não é verbo a se conjugar, é substantivo abstrato cuja existência depende da essência de um componente passivo, real ou metafísico. O Wikipédia alude a fé como uma consistente opinião de que algo é verossímil, sem qualquer prova ou critério utilitário de averiguação pela irrestrita confiança que assentamos nesta ideia ou fonte de referência. Diz aí, São Tomé, o que é a fé?

A ciência ajuíza fé como um resoluto coeficiente máximo do crer. Se audaz, afoita, fantasmática ou ambígua, a fé é individual: cada um alimenta a sua, às vezes de forma criteriosamente paradoxal às oportunas deliberações do dia-a-dia. Sendo crença que tange tanto o provável quanto o que transcende a mais utópica probabilidade, um ato é prudente: segregar seus vieses e evitar a fé perniciosa. Ordinária, a propósito. Trata-se daquela com demasiado poder de devastação. Servem como exemplo indivíduos que “testemunham” um pastor evangélico retirar um coração pulsante do peito de uma pessoa, com apenas um detalhe sórdido: a pessoa permaneceu viva sem o órgão. O argumento? A fé no poder de Deus.

Outros arquétipos inimagináveis se multiplicam nas mentes devaneadas, como a fé nos lobos da política, em passados ardilosamente distorcidos, ideologia sem prática ou gravidez sem o gameta masculino. Essas, sustentadas por grande poder de impossibilidade, aldeiam parvoíce berrante, cegueira ingênua e sofistas populistas, e erguem a ponte para prováveis reflexos ruinosos. É como saltar de uma torre de cem metros, com a certeza de chegar saudável ao chão.

“Se um homem tiver realmente muita fé, pode dar-se ao luxo de ser cético”, alimentava Nietzsche. A dúvida certamente é um arrebatador meio para uma fé virtuosa, tendo em vista que de fé nociva e traiçoeira regimes políticos, religiões, ideologias, aforismas e até a ciência estão coalhados. Quem garante não haver inocência em embustes que evidenciam o sinal da boa fé numa razão? O que seria também dos infindáveis impossíveis realizados pela fé cega e derradeira que nos move a realizar prodígios? Das inexplicáveis maravilhas delineadas pela fé pulsante das orações, do pensamento e das paixões? “A minha fé, nas densas trevas, resplandece mais viva”, professa Gandhi.

A fé e seus múltiplos semblantes. Deveríamos tentar decifra-la com sabedoria logo em sua gênese, para que não nos tome com suas mãos iludes e nos faça reféns por tortuosos caminhos? Ou consentir que nos conduza como o instinto mais legítimo do otimismo exacerbado e delineador da vida? “A fé é a mais elevada paixão de todos os homens”, brada o pai do existencialismo, Soren Kierkegaard.

Como toda brilhante e intrínseca ferramenta da natureza humana, a fé tem seu elevado grau de complexidade: nas quedas mostra sua dualidade e nas vitórias sua dimensão. Se muitas vezes ter fé é dançar à beira do abismo, dancemos com cautela. Ou não?

À exceção da fé no amor. A esta me rendo, como fez o sábio índio ao entrar num círculo de pedras no chão de um deserto onde não chovia há dez anos. De olhos fechados e braços abertos, venerou clamando a todos os seus antepassados, repetindo incessantemente com profundidade lancinante. Enquanto orava, imaginava seus pés pisando a lama feita pela chuva imaginária. Sentia o cheiro da água escorrendo pelas paredes das casas da aldeia, ouvia o gorgolejo dos vales inundados, sentia as gotas a molhar seu rosto e apreciava o sabor da vida renascer. Ao final murmurou: “uma prece deve ser fundada na fé de que já se conquistou. Orar e pedir que algo aconteça é admitir sua inexistência naquele momento, fortalecendo o que lhe falta”. O céu então se derramou em abundantes lágrimas, e o que era pó se tornou vida.

Fé e amor, energias complexas e insignes que dividem um conspícuo ponto em comum: nenhuma é obtida pela força.

Rodrigo Batalha é escritor, palestrante e consultor para alto desempenho humano – Veja nos depoimentos.