A utopia da imparcialidade jornalística

Você provavelmente é mais um cidadão treinado pela imprensa a acreditar na maior fantasia de todos os tempos: a da imparcialidade da própria imprensa. Até porque o fato de um jornalista se afirmar imparcial já comprova toda sua parcialidade, pois declara um posicionamento em favor de ninguém mais do que si mesmo. Evidentemente ele tem ótimas razões para te convencer a achar confiável se informar por telejornais, sites e redes sociais de veículos tradicionais. A maioria nem vai notar aquela palavrinha tendenciosa do título, o ângulo interesseiro das imagens, a intenção do texto, a edição malabarista, a trilha sonora conveniente e muito menos o imenso mecanismo por trás das câmeras e dos contratos. Ideologias, fanatismos, dinheiro, paixões e interesses, verdadeiros motores do jornalismo, são os grandes protagonistas ocultos pela narrativa da isenção. Diga-me com quem tens contrato, e eu te direi quem és.

Recentemente a parlamentar francesa, Marine Le Pen, disse a uma jornalista que a imprensa tradicional, essa mesma que parcialmente se afirma imparcial, é a maior produtora de fake-news e não é confiável. Não custa lembrar que desde que a informação virou mercadoria, a verdade perdeu toda a sua relevância. A maior fake-news de todos os tempos é dizer que não há interesse em quem vive do escambo de interesses. Não por acaso, os que menos reconhecem a parcialidade são exatamente os que mais precisam ser vistos como imparciais. Nesse caso difundir e defender a crença numa virtude irrealizável já facilita bastante os negócios.

Por sinal, aquilo que muitos chamam de virtude, não é, via de regra, senão um fantasma formado pelas paixões, ao qual as pessoas dão um nome bem honesto para impunemente fazerem o que quiserem. É o caso da intocável liberdade de imprensa, o habeas corpus vitalício e absoluto para que a falsa imparcialidade faça o que bem quer com a informação sem ser incomodada, até mesmo publicidade pra vírus.

O engodo da neutralidade no jornalismo é insistente por questão de conveniência e rentabilidade, assim como os mitos criados na antiguidade como os deuses egípcios, a fim de manipular a população a construir pirâmides, pontes e fossos. Os séculos passaram mas os objetivos são os mesmos: usar a crença em fantasias para levar muitas pessoas a cooperar com o interesse de poucos contra os próprios interesses. Na política e no mundo jornalístico, as utopias, essas sim, são certezas vivas e alimentadas todos os dias.

Qualquer jornalista possui crenças, gostos, valores, experiências, regras, padrões de significado, desejos, tendências, traumas, temores e afetos que definem a impressão digital exclusiva da notícia produzida. Vaidades exacerbadas a parte, o incrível é que eles negam ser parte já sendo a parte criadora do formato ao fazer escolhas e opções tão pessoais ou corporativas. O problema é que a vida parece não ter dado subsídio espiritual e moral suficiente à maioria, e por isso eles dependem tanto da mistificação e da falsificação da realidade para sempre ter razão, poder e o bolso cheio, o que seria impossível com a verdade.

O ato de individualizar ou seguir linhas editoriais na construção ideológica da notícia já se traduz em optar por elementos específicos, entre outras tantas possíveis, como por exemplo: o que vai e o que não vai ser publicado, a fonte que se acredita ou não ser a mais confiável, os termos do título e do texto, a pauta que se entende por mais interessante, e inclusive o viés linguístico (tom, expressão e as palavras). Se cada detalhe da matéria é resultado de inúmeras decisões, paixões e preferências pessoais, como afirmar a impessoalidade dessas decisões? Qual veículo foi imparcial ao ponto de exibir uma denúncia grave em matéria de capa sobre seu maior cliente? Pois é… O teatro é parte do jogo. Ou você acredita que a maior emissora do Brasil repleta de processos judiciais exiba em seu telejornal noturno matéria bombástica sobre o processo por corrupção internacional que ela sofre nos EUA? Mas por que justo nos EUA e no Brasil nada acontece? Ouça então o que o mestre Millôr Fernandes disse certa vez:

“A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o País. Acho que uma das grandes culpadas das condições do país, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa”.

A imparcialidade jornalística defendida com tanta veemência pelos veículos tradicionais não passa de uma grande e conveniente farsa em favor do poderoso consórcio de autoridades e jornalistas que usam a democracia como cortina de fumaça contra os interesses da sociedade. Quando um político ou ministro de suprema corte diz que “o ataque à imprensa e ao supremo tribunal são ataques à democracia”, só quer proteger os aliados do jogo, até porque eles sabem que as instituições não representam democracia nenhuma, pois são parte do Estado de direito, e não da vontade (poder) do povo, como reza o próprio conceito de “democracia”. A intenção é velhaca: inverter as posições no tabuleiro, já que os verdadeiros ataques contra a vontade da população vêm exatamente de autoridades judiciais, políticas e da imprensa tradicional de maneira sistemática, diária, consistente. A ideia é exatamente o oposto da narrativa: defender com fervor que os cúmplices parciais tenham total liberdade. Ou seja, você me protege, eu te protejo, e no final todo mundo se dá bem. Menos o povo, esse mesmo que, na democracia, como diria Drummond, só imagina estar no poder.

O conluio em defesa da imparcialidade e da liberdade de imprensa são os pilares que sustentam essas e outras metanarrativas de quem não abre mão de usar a força da desinformação para enriquecer poucos, e controlar o que a sociedade pensa, faz e perde.

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