Benefícios e perigos da rotulagem

Benefícios e perigos da rotulagem

A categorização pela aparência é um recurso evolutivo. Classificar de acordo com o aspecto é um dos atos mentais mais importantes que desempenhamos, por isso fazemos inconscientemente e o tempo inteiro. Classificamos letras, cores, tamanhos, formas, conteúdo e até datas de maneira natural e automática. Se nosso cérebro não tivesse evoluído para agir assim e tratasse tudo que encontramos como algo singular, seria comum sermos comidos por tigres enquanto avaliaríamos se aquele animal listrado é perigoso ou pacífico. Graças ao pensamento classificatório pelos aspectos perceptíveis podemos percorrer entre cães e mesas com agilidade e eficiência. Até a leitura desse artigo depende de nossa capacidade de classificar letras e símbolos.

Esse processo não nasceu de avaliações morais, foi evolução. Rotulagens também impactam nossa intepretação acerca de outras pessoas, principalmente quando elas se incluem ou não aos grupos sociais de que fazemos parte. A tendência a estarmos abertos e a criarmos laços com quem faz parte de nossos grupos ou a quem possui aspectos similares, é bem maior e influencia as avaliações que fazemos consciente e inconscientemente. A origem desses comportamentos é consequência de um longo processo histórico, evolutivo. Tribos de primatas já reconheciam membros de tribos rivais pelos aspectos peculiares, e assim se defendiam deles. Uma união de milhões de neuroassociações que unificam os detalhes captados por nossos sentidos, e se transformam em memória após recebem ‘adesivos emocionais’. Uma prova está no “teste de associação implícita” (IAT), que se tornou um instrumento da ciência para medir o grau com que um indivíduo associa aspectos a padrões sociais.

Mesmo que nossas avaliações sobre outras pessoas pareçam racionais, elas muitas vezes são alimentadas por métodos automáticos e inconscientes, inclusive sobre a regulação das emoções conexas. Advogados, médicos, torcedores de futebol, políticos e membros de religiões tendem a sentir mais afinidade e puxar a sardinha para seus grupos. Os testes de IAT provaram o caráter inconsciente (70%) da estereotipagem e surpreenderam até os próprios participantes do estudo.

Apesar do importante papel que a rotulagem exerce em nosso cérebro em prol da sobrevivência, devo alertar sobre os perigos que o rótulo errado pode provocar em adultos, mas principalmente em crianças. Recentemente meu filho de 4 anos começou a se autodeclarar preguiçoso e agir como. Ele nunca foi assim. Estranhei muito tal expressão ser dita por ele e o fato de ter passado a se comportar de forma congruente com o rótulo. Nunca utilizamos essa palavra, até porque preguiça não existe, o que existe são objetivos impotentes. No mais, ele nunca foi uma criança preguiçosa, ao contrário. Em minha casa sempre utilizamos um vocabulário estratégico voltado para construir e fortalecer virtudes, aspectos morais, estimular boas decisões e inibir reações intempestivas. Não falamos “você está fazendo errado”, falamos “é desse jeito que se faz certo”; não falamos “não pegue esse carrinho”, dizemos “pegue aquela bola”; muito menos “você é desobediente”, ensinamos “você é inteligente, deve obedecer”. Rotular como preguiçoso, desobediente, mal-educado ou molenga, mesmo que de forma não intencional ou por brincadeira, vai construir a personalidade da criança no sentido que o termo representa. É muito pior que palmada ou castigo, por vezes necessários na educação.

Nossos neurônios (células que transmitem impulsos nervosos) sempre que manifestam alguma sinalização, o fazem por meio de representações dispositivas, que poderíamos traduzir como específicas reproduções imagéticas caracterizadas por frequência, timming, intensidade e velocidade do disparo eletroquímico. Mais de 95% do processamento cerebral é feito através de imagens. Portanto, cada vez que os neurônios de uma criança processam a palavra ouvida ‘preguiçoso’, por exemplo, eles têm que gerar uma representação imagética exata para ‘preguiçoso’. Quanto mais ela ouve e processa a palavra, mais a representação provocará uma impressão imagética física, fixando a palavra e o comportamento convergente por meio de memórias neuroassociadas às representações referentes. É como se você pegasse um barbante, unisse a outro, mais outro, e mais outro, todo dia um ou dois, até ter mil barbantes juntos. Como romper isso agora?

Nossa sociedade normatizou a utilização de palavras que representam doenças, emoções ruins, desvirtudes ou comportamentos indesejados como se fossem representações inócuas e nada reverberassem no cérebro do indivíduo. Sou muito ansioso, você é um banana, o jogador é explosivo, ela é bipolar, o menino é hiperativo. Luto contra esse arquétipo de rotulagem há 20 anos, e finalmente em 2023 estudos neurocientíficos realizados pela Universidade de Princeton – New Jersey, comprovaram a forte influência que rótulos na infância provocam na vida adulta. Atendo 12h por dia pessoas de 16 países. A maioria chega carregada de rótulos ruinosos e vocabulários desastrosos. Todos com pelo menos dois transtornos mentais classificados no DSM.

Não teríamos resistido como espécie, muito menos como indivíduos, sem nossa habilidade de categorizar e rotular. Mas para superar as tendências inconscientes de rotulagens involuntárias o empenho é imprescindível. Uma boa técnica é sair do automático e colocar o cérebro no modo racional para assim ponderar com cautela por que, para que e quais as consequências do que/quem estamos rotulando. Se presenciar um comportamento inadequado, aponte para o caminho certo ao invés de rotular a pessoa pelo erro e impactar na autoestima, segurança e autoconfiança dela. Rotule positivamente o que deseja sem reforçar o problema.

Quanto ao meu filho, ele era chamado de preguiçoso pela própria professora, uma pessoa boa, mas que, por vê-lo dormir após o almoço – a necessidade diária de sono de crianças de 3 a 5 anos é de 10 a 13 horas -, obscura e inocentemente o induziu a adotar um comportamento verbal e social que nunca teve. Por ela ser uma referência para ele o impacto da estereotipagem é ainda maior, afinal, se ela afirma algo, como ele vai acreditar no contrário? Se tivesse dito alto em tom de alegria “levanta, amiguinho, você é muito alegre e cheio de energia pra ficar deitado aí, vem se divertir com a gente”, teria educado, atingido seu objetivo e evitado todas as implicações indesejadas.

Rodrigo Batalha é neurocientista e escritor